domingo, 6 de dezembro de 2020

Foda-se

O menino está entretido no seu brincar e ouve o pedido do adulto "me dê um abraço". Manhoso, responde um não cheio de dengo, vira as costas e corre. O adulto, com toda a sua infantilidade diz por entre os dentes "foda-se".

Não era a primeira vez que a cena acontecia, mas aquela despertou um incômodo grande. E eu fui em defesa da criança dizendo que não era certo falar daquele jeito. "Eu só estava brincando", defendeu-se logo. Claro que não estava. Aquilo era uma agressão.

A cena foi ruminada na minha mente até chegar na minha criança e em outros foda-se que recebi. "Não quer me dar abraço? Deixe estar quando quiser alguma coisa de mim." Seguido de muitos "não fez mais do que a obrigação". E muitas coisas fizeram sentido.

No começo da pandemia, lendo Marshall Rosemberg e seus princípios da comunicação não-violenta, encontrei uma frase que mexeu comigo. Conversando com o filho de 3 anos ele disse: "eu amo você porque você é você". Era exatamente isso.

Eu tenho marcado à ferro a ideia de que o amor depende de atos, que somos amados por aquilo que fazemos a alguém. Se não fazemos, foda-se. 

Aquele desprezo recebido sempre que eu não atendia às expectativas me levou a uma prisão na qual precisava repetidamente agradar para mimetizar um amor. Mas aquilo não é amor.

Amor é o que sentimos por alguém pela sua existência, presente ou ausente. Amar você porque você é você. 

Talvez essa seja a chave para eu me libertar desse cárcere em que doar era a única forma que me trazia uma sensação de bem-querer, um afeto no balcão de trocas. Mas essas migalhas não me nutrem mais.


sábado, 21 de novembro de 2020

Revisitando meus passos

A vida passa e a gente começa a se resumir ao nosso currículo profissional. Contamos uma história na qual parece que só houve de notável aquilo que pode ser usado em uma entrevista de emprego. Mas não é assim.

Recentemente, fiz 40 anos. Sim, quarentei na quarentena. E esse frio na barriga e a solteirice autoimposta há 3 anos, desde o término de uma relação abusiva, me fizeram ver que o tempo está voando. E que eu, que amo meu trabalho, no leito de morte vou pensar no que deixei de viver. E no que vivi.

Não posso reclamar de monotonia. Há muito tempo penso em registrar, pra organizar sobretudo em minha cabeça, passos da minha jornada. Dores, amores, feridas, sorrisos. Minha realidade surrealista.

Mais uma vez, vou tentar começar. Sem promessa, porque muita coisa dói. Mas vou tentar.

segunda-feira, 2 de março de 2020

Coronavírus e a hipocrisia parental

Já tem muita gente falando do despautério que é dar ao COVID-19 o título de cavaleiro do apocalipse com dengue, sarampo, feminicídio e tantas outras formas de morrer disputando para levar nossa alma pro além. Quero narrar outro causo.

Conheço um pai (dá pra chamar de pai?) que tem sistematicamente postado alardes, avisos, terrores sobre a doença. Sobre o perigo que nos aguarda na esquina e as mais escabrosas teorias da conspiração envolvendo a dominação global e a epidemia.

O detalhe é que sei, de fonte segura, que esse mesmo que se preocupa com o futuro da humanidade cancelou o plano de saúde dos filhos. Pra completar, mesmo com decisão judicial, não repassa o valor para que a mãe possa manter um seguro para o caso de necessidade de atendimento para aqueles que trouxe ao mundo.

Fazer furdunço no Facebook é moleza. Quero ver pagar a pensão. Ou, mais raro ainda, limpar a meleca e passar a noite em vigília medindo uma eventual febre dos rebentos que abandonou.


O roteiro de novela

A vida real não tem compromisso com a verossimilhança. A frase é mais ou menos essa, mas o que vale é o raciocínio, do sempre brilhante professor Wilson Gomes.

Reativei esse blog para contar as crônicas, causos, vivências de amigos (e algumas minhas) que de tão surreais parecem ter saído da cabeça de um escritor que tomou umas pancadas. Se estivessem em uma obra ficcional, os críticos seriam severos: a obra é uma farsa.

Arthur Rimbaud já dizia que a vida é uma farsa a ser levada por todos. Na minha inocência, achava que era só uma frase bonita. Mas só há lógica na ficção.

Por isso, vou registrar e narrar (com umas pitadas de invenção pra ajudar a preservar a identidade das personagens) os fatos mais insanos, mais hollywoodianos, mais farsescos, ridículos, absurdos, non-sente, bizarros, cretinos que me contam por aí.

Como repórter e ouvidora de histórias, vou tomar o papel novamente de contadora.

Faço sem a expectativa de alguém me ler. Faço para tirar de mim esse emaranhado de vidas.

Ao leitor eventual, não espere método, lógica ou técnica. Vai ser como for.

Em tempo: não pedi autorização de ninguém. Se você é meu amigo e sentir-se exposto, venha falar comigo. A ideia não é essa.